Num espaço de apenas seis meses, o apresentador de TV Fausto Silva, 73, passou por dois procedimentos de transplante de órgãos: um de coração, em agosto último, e um de rim, em fevereiro passado. O artista foi obrigado a permanecer mais de 45 dias internado após o transplante de rim, a fim de lidar com uma reposta inicial de rejeição do órgão transplantado pelo organismo. Porém, ainda que se tratasse de um paciente de idade avançada, a expertise e o conhecimento acumulado das equipes médicas possibilitaram que o episódio de rejeição fosse superado, e ele pudesse retornar para sua residência em São Paulo.
O episódio envolvendo o apresentador trouxe para a atenção pública a eficiência alcançada pelo Sistema Nacional de Transplantes e a comunidade médica brasileira. Decorridos aproximadamente 120 anos desde que se iniciou a era dos transplantes de órgãos como ferramenta médica efetiva, os brasileiros desfrutam da possibilidade de acessarem aquele que é o maior programa público do gênero no mundo. O número de procedimentos realizados anualmente fica na casa das dezenas de milhares (veja gráfico abaixo), cujo financiamento se dá, quase integralmente, por meio do sistema único de Saúde (SUS), assim como o fornecimento dos medicamentos imunossupressores necessários para assegurar a saúde dos indivíduos transplantados.
Porém, a lista de espera por um transplante é extensa. Em meados de abril, havia cerca de 70 mil pessoas inscritas para receberem um transplante de córneas, medula óssea ou de órgãos. “As filas são divididas por órgão, tipo sanguíneo e estado”, esclarece a médica Luciana Haddad, professora da Universidade de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). “As filas são únicas, pois cada órgão tem um critério de priorização. Alguns são por gravidade, outros não. Há também prioridades nacionais. Nos casos de hepatite fulminante, por exemplo, o paciente passa a ser classificado como prioridade nacional”, diz. Nos últimos quatro anos, 32.308 transplantes de órgãos foram realizados, além de 50.311 transplantes de córnea e 12.546 transplantes de medula óssea. “Um doador doa vários órgãos”, explica a médica.
Doações voltam ao patamar pré-pandemia
No mundo, o país é o terceiro em número absoluto de doações de órgãos, precedido apenas pelos Estados Unidos e pela China. Durante a pandemia de covid-19, houve uma queda expressiva nas doações, porém 2023 trouxe um aumento de 9,6% na quantidade de doadores em potencial e de pessoas que efetivamente doaram seus órgãos em relação a 2019, de acordo com o Ministério da Saúde (MS) com dados das Centrais Estaduais de Transplantes.
“O ano de 2023 alcançou um patamar superior ao ano pré-pandemia de 2019, e a tendência é de aumento”, diz Gustavo Modelli, que é coordenador do Programa de Transplantes de Órgãos Sólidos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HC-FMB). O HC-FMB é reconhecido como referência em transplantes no interior de São Paulo, mas reduziu suas atividades durante o período de pandemia e está gradativamente retomando o ritmo usual. As doações que ocorreram em 2023 representam o equivalente a 19.9 doadores efetivos por milhão de população. “Mas ainda é insuficiente para suprir a demanda de transplantes. Tais números suprem cerca de 1/3 das necessidades de transplante de rim e fígado. Para efeito de comparação a Espanha que tem o maior de doadores efetivos por milhão teve 46.3 pmp no ano de 2022”, diz.
Desigualdades regionais
Modelli diz que um importante desafio para as doações de órgãos no Brasil envolve a redução de taxas de recusa familiar, que pode variar entre 40% e 50% dos óbitos. “Isto significa que até 50% de potenciais doadores são não autorizados pela família. Este ponto deve ser melhor trabalho com informação para a população de como funciona o processo de doação e transplante no Brasil. Mostrar que o programa de transplantes é justo, utiliza-se de um sistema de distribuição informatizado e sem privilégio a nenhuma pessoa ou classe social”, diz.
O número insuficiente de doações também preocupa o médico José Eduardo Jr., coordenador médico do Programa de Transplantes de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein. Neste programa, cerca de 85% dos transplantes são de pacientes do Sistema Único de Saúde, feitos a partir de uma parceria estratégica, o Proadi-SUS, que integra mais grandes hospitais em outras áreas. “Além da subnotificação de morte encefálica, a recusa familiar e parada cardíaca do doador impactam negativamente as taxas de doação no país”, observa, destacando a grande variação que há entre os estados. “Enquanto no Paraná e em Santa Catarina temos índices que se assemelham aos dos países onde mais se doa, como a Espanha, em outros estados pode passar um ano sem que haja sequer um doador.”
E as diferenças regionais não se restringem à oferta de doadores. “Existem estados sem nenhum programa de transplantes, em geral concentrados nas regiões Norte e Centro-Oeste”, diz Modelli. “Precisamos aumentar a oferta de centros transplantadores com equipes especializadas. Não pode haver um estado inteiro sem nenhuma equipe de transplantes”, diz. Outra necessidade envolve aumentar aumentar o apoio às organizações que conduzem a procura de órgãos. “Essas organizações fazem um excelente trabalho no nosso país. Devemos planejar estratégias do aumento destas estruturas, recursos e cursos especializados.”
Pesquisa na área inclui órgãos artificiais e de outras espécies
A ciência busca caminhos para melhorar a oferta de órgãos. Muitas companhias de biotecnologia investem bilhões de dólares em pesquisas sobre rejuvenescimento celular. A engenharia genética também avança no desenvolvimento de técnicas para produzir órgão e modificar proteínas e genes de órgão de animais para que venham a ser aceitos sem rejeição pelo organismo humano. José Eduardo Jr. Ressalta que o recente xenotransplante de um rim de porco para humano, feito pelo médico brasileiro residente nos Estados Unidos, Leonardo Riella, ainda acontece dentro do âmbito da pesquisa. “Todos os casos divulgados de xenotransplantes (entre espécies) foram de pacientes com peculiaridades que permitiam que fosse eticamente aceitável a realização do procedimento. Ainda há muito o que desenvolver e aprender para que o xenotransplante se torne rotina na prática assistencial”, esclarece o especialista.